quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Análise do poema Canção de Cecília Meireles

Canção -


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

A tristeza e a melancolia são o tema deste instante poético. Permeando a dor e as consequências das decisões tomadas ao longo da vida, o poeta aponta os efeitos causados por estas à alma. Não é sem dor “a noite se curva de frio” ou sem consequências “meus olhos secos como pedras / e as minhas duas mãos quebradas” que o eu poético decide abrir mão de seus sonhos “depois, abri o mar com as mãos, / para o meu sonho naufragar”.

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

O poeta utiliza-se da alegoria de um navio naufragando para falar da morte de seus sentimentos ou desejos, da destruição de seus sonhos “debaixo da água vai morrendo/ meu sonho, dentro de um navio”. Os sonhos naufragados são sonhos não realizados, indicando que, por certo tempo, o eu lírico dedicou-se a eles; até preparou-lhes um lugar especial. Mas, ao mesmo tempo, parece antever-lhes o insucesso, como se previsse o naufrágio. E assim prevendo, antecipando, decide ele mesmo destruí-los, naufragá-los.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

A beleza natural causa-lhe perplexidade e contrasta vivamente com o fizera. Parece um assassino que acabara de matar sua vítima indefesa e agora contemplava o sangue a escorrer entre seus dedos. O que fizera?

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

O vento pode ser interpretado como um pressentimento, das consequências, da dor que está por vir. O vento tanto pode levar embora quanto trazer; este parece trazer. O que ele traz? O frio da solidão? A dor? futuro companheiro (a)? Seja como for, o poeta pressente sua presença e, antecipadamente, sofre.

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

O poeta parece ter pressa, por isso, está disposto a fazer o que for preciso para livrar-se do sentimento, desse sonho, que antes guardara com tanto desvelo. O que interessa, agora, é afundá-lo completamente, de forma a sequer haver qualquer sinal de sua presença. A ideia de lágrimas enchendo o mar para afundar um navio, pode significar a ação voluntária de subverter o sonho de uma vez por todas e o mais rapidamente possível.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

O mundo parece continuar, como se nada houvesse acontecido; ninguém parece notar o aniquilamento interior do poeta; ele, tampouco, o quer demonstrar; esconde, finge, interpreta. Aparentemente, tudo está bem e não há mais lágrimas para chorar. Ou, quem sabe, a tristeza tamanha que agora carregue, seque-lhe os olhos. Suas mãos, autoras da ação destruidora, estão agora, elas próprias, destruídas, incapazes de novamente realizar semelhante ação. Marcas visíveis de seu sofrimento, de sua auto-mutilação.

O tema melancólico do poema sugere a tristeza causada pela perda dos sonhos, mas não para aí. Sugere, também, a determinação em superar essa tristeza. Tristeza essa causada por suas próprias mãos, mostrando ser possível, ainda que não sem dor, extirpar desejos, sonhos ou sentimentos destrutivos antes que sejamos por eles destruídos.